sábado, 11 de outubro de 2003

Hypatia de Alexandria, mártir da ciência

Hy­pa­tia, tela de Rafael Sanzio

Para os cristãos ela era “uma abominável mensageira do inferno”, mas passou para a história como uma das últimas expoentes da filosofia pitagórica, e a primeira mulher que deu contribuições consideráveis à ciência da matemática

Texto de Bira Câmara

Com a ascensão do Cristianismo e o declínio do Império Romano do Oci­­dente, a cultura e a ciência grega tornam-se mal vistas. Em 415, Hy­pa­tia de Ale­xan­dria, matemática proeminente, filósofa, astrônoma e astróloga foi arrastada da sua carruagem e selva­gemente linchada por uma turba de fanáticos cristãos. Uma das últimas expoentes da filosofia pitagórica, ela é considerada como a primeira mulher que deu contribuições consideráveis à ciência da matemática.

Mas ser matemático ou astrólogo na Alexandria, nesta época, significava correr sérios riscos. O Concílio de Laodiceia em 364 proscrevera a adivinhação e os padres foram proibidos de praticar matemática e astrologia. O Câ­none 36 determinava:

“Aqueles que são do sacerdócio ou do clero não poderão ser mágicos, encantadores, matemáticos, ou astró­logos; nem eles farão amuletos que são cadeias para as suas próprias almas. E aqueles que fazem uso disso, nós ordenamos a expulsão da Igreja.”


Retrato de Hypatia, desenho
de Elbert Hubbard, 1908
No ocaso do paganismo, a filosofia e o misticismo andavam de mãos dadas.  Os imperadores cristãos reprimiram energicamente essas práticas e, por razões de Estado, acrescentam uma hostilidade aberta contra a velha religião. Mas o cristianismo triunfante, após três séculos de luta, assimilara tudo o que era verdadeiro e sustentável das doutrinas da antiguidade, principalmente da escola de Platão. Seus seguidores, nos primeiros séculos da era cristã, últimos adversários da nova religião, acreditaram que poderiam deter a marcha dos homens vivos «galvanizando múmias». A batalha já estava pra­ticamente perdida e os pagãos da escola da Ale­xandria trabalha­vam contra a sua vontade, e sem o saber, para o edifício do cris­­tia­nismo que dominaria doravante a civilização. Os grandes nomes do neoplatonismo, Amônio Sacas, Plotino, Porfírio e Proclo, eram notáveis pela ciência e pela virtude. A teologia que postulavam era elevada, a doutrina moral, e seus costumes austeros. Graças a eles a magia deixou de ser considerada ofício de gente ignoran­te e inferior. A figura maior e mais sublime deste período, a es­trela mais bri­lhante desta constelação foi Hipatia, filha de Theon, essa «casta e sábia jovem cujas virtudes e inteligência deveriam levá-la ao batis­mo, mas que morreu como mártir da liberdade de cons­ciência». (*)

Theophilus, arcebispo da Alexan­dria, via o paganismo como um adversário e, com permissão dos seus superiores, ordenou queimar completamente o Templo de Serápis em 389. A destruição da Biblioteca aconteceu logo depois.

“Hipátia antes de ser morta na igreja”,
por Charles William Mitchell, 1885
Neste clima crescentemente volátil, os matemáticos (como eram chamados os astrólogos naquela
época) tornavam-se cada vez mais excluídos. O sistema ptolemaico do universo dominava o pensamento e deveria permanecer durante muitos séculos como uma das maiores realizações científicas da humani­dade. Graças a ele podiam ser calculadas as posições dos planetas e eclipses com grande precisão, mas prever o futuro era considerado contrário aos desígnios de Deus. Qualquer um que praticasse matemática, astro­nomia e astrologia recebia o rótulo de charlatão ou bruxo.

Filha de Theon de Alexandria, ela o auxiliou nos seu textos sobre matemática e astronomia, compilando frequentemente tábuas de posição de corpos celestes. Oradora profunda, as pessoas viajavam para ouvi-la falar; dizia-se que ela era semelhante a Minerva, a deusa da sabedoria, sua protetora.

Hypatia enfrentou contínua cam­panha de seus adversá­rios cris­tãos, que alimentavam o ódio dos alexan­drinos mostrando-a como “uma abominável mensageira do inferno”. Para dar credibilidade à sua “malignidade”, falava-se da conhecida dedicação do seu pai à astrologia e à magia, os seus escritos sobre interpretação dos sonhos, e dos astrólogos que frequentavam regu­larmente a sua casa. O seu en­vol­vimento com astronomia e astro­logia era associado à prática de ma­gia ne­gra e adivinhação. Dizia-se que era uma bruxa satânica e que lançava feitiços contra qualquer um na cidade.

Não se sabe por que ela não fugiu de Alexandria quando come­çaram as perseguições, decisão que poderia ter evitado seu destino trágico. Em 415, durante o período cristão da Quaresma, Hypatia foi arrastada da sua carruagem e atacada por uma turba de zelotes cristãos quando ia para sua casa. Estes fanáticos, braço armado do governo do bispo Cirilo, a arrastaram para uma igreja local onde a despojaram das roupas e arrancaram-lhe a pele do corpo com objetos afiados. Depois disso, os zelotes a esquartejaram e levaram seus restos para um lugar chamado Cinaron, onde a queimaram. Embora Cirilo não estivesse presente durante o ataque e não se tenha nenhuma evidência de que tenha ordenado a ma­tança, acredita-se que ele a ins­tigou, pois incitava sis­te­mati­camente os cristãos à violência em nome da Igreja. Muito tem­po depois deste evento, Cirilo seria louvado por au­tores cristãos por ter “destruído os últimos restos de idolatria na cidade”.


“Morte da filósofa Hypatia, em Alexandria”.
Ilustração extraída do livro Vies des savants
illustres, depuis l’antiquité  jusqu’au
dix-neuvième siècle, de Louis Figuier, 1866



O assassinato de Hypatia, uma mulher de sessenta anos, amada e lou­vada pela sua beleza, sabedoria e compaixão, não foi apenas um ato de ódio cego, mas também uma afronta criminosa merecedora das penalidades mais severas contra os seus au­tores. No entanto, estas penali­dades nunca foram aplicadas nem houve qualquer prisão ou investigação. Depois de sua morte, Cirilo foi cano­nizado pela Igreja Católica e tor­nou-se um de seus santos.

A morte de Hypatia marcou o fim da última fase da ciência antiga e a partir de então a investigação cien­tífica passou a ser vista como inimiga do dogma religioso. Os as­tró­­logos, sempre envolvidos em cons­­pirações, não eram mais perse­guidos pelo crime de lesa-majestade, mas como inimigos da religião dominante. Muitos filósofos deixaram a cidade, com medo de ter o mesmo destino de sua amada colega. Com o desaparecimento de Hypatia “a última chama da livre investigação apa­gou-se antes da longa noite de esco­lasticismo clerical” que se abateu sobre o Ocidente.

O poeta Paladas, contemporâneo de Hipatia, dedicou a ela uma de suas obras e, em um de seus poemas, registrou:

Buscando no Zodíaco, em direção a Virgo,
Sabendo que tua província é o Firmamento,
Encontrando teu brilho em tudo o que vejo,
Rendo-te homenagem, reverenciada Hipatia,
Estrela brilhante do Ensinamento, sem mácula.

Nota:

(*) Eliphas Levy, Histoire de la Magie, pág.225

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