segunda-feira, 5 de março de 2018

A astrologia nas obras de Shakespeare

 
As referências astrológicas são abundantes no texto shakespeareano, o que não é de se estranhar pois a astrologia - como a alquimia e o hermetismo em geral - fazia parte da cultura do século dezesseis e fascinava não só as classes mais baixas, como também a aristocracia, os artistas e filósofos. 

Texto de Bira Câmara

William Shakes­peare nasceu a 23 de abril de 1564, em Strat­ford-on-Avon, e não se sabe se algum astrólogo daquele tempo fez o seu horóscopo. Mas o próprio Shakespeare tratou de comemorar o decanato sob o qual nasceu, da mesma forma que Dante celebrou o seu na “Divina Comédia”. Em “As Alegres Comadres de Windsor” (V, i, 3-5) ele registrou: “dizem que há uma divindade nos números ímpares, ou no nascimento, na fortuna, ou na morte”. E na peça “Noite de Reis”: 

Sir Andrew: Vamos nos meter em uma farra qualquer?
Sir Toby: E o que mais haveríamos de fazer? Não nascemos sob o signo de Touro?

Na época de Shakespeare, a astrologia gozava de alto conceito em todas as classes sociais. Tanto os nobres como os plebeus consultavam astrólogos e estavam familiarizados com os conceitos astrológicos. O astrólogo mais famoso da era elizabetana era John Dee (1), que teve como o cliente a própria rainha Elizabeth (2). Ele se reunia freqüentemente com a rainha e seus cortesãos, aconselhando-os no dia-a-dia. Assim, não é surpreendente que Shakespeare fosse tão bem versado em astrologia. Aliás, diz-se que Próspero, o personagem central de A Tempestade foi baseado em John Dee...

São encontradas mais de cem referências astrológicas em todas as 37 peças de Shakespeare, e muitas das ações dos seus personagens são favorecidas ou dificultadas pelas estrelas. Em seis de suas peças os signos do zodíaco são mencionados e os planetas responsabilizados até mesmo por desastres. Alguns dos seus personagens foram governados por estrelas particulares: Póstumo nasceu sob a influência do planeta benevolente Júpiter e, assim, teve um destino favorável ao término da peça. Antonio, em Júlio Cesar, declara que a sua primeira derrota aconteceu porque as estrelas o tinham abandonado e culpa o eclipse da lua pela sua derradeira queda. Outro personagem, Monsieur Parolles, nasceu sob a influência do beligerante planeta Marte e por isso tornou-se um soldado:

“Helena: Monsieur Parolles, você nasceu sob uma estrela caridosa. 
Parolles: Nasci sob Marte.  
Helena: Eu acho que foi especial­mente sob Marte.  
Parolles: Por que debaixo de Marte?  
Helena: As guerras o seduziram, para isso é preciso que tenha nascido debaixo de Marte.  
Parolles: Quando ele estava predominante?  
Helena: Acho, por certo, que estava retrógado.”

(Bom é o que bem acaba)  

Estes exemplos e muitas outras passagens astrológicas que permeiam a produção shakespereana mostram que o dramaturgo não só conhecia a astrologia, como se inspirava nela para a construção do caráter e da personalidade de seus personagens.

A profunda compreensão da motivação do comportamento humano de Shakespeare somava-se ao conhecimento igualmente profundo do relacionamento entre os astros e os homens, como demonstra numa das falas de “Otelo”, atribuin­do a loucura à influência da Lua:

Isto é um erro da Lua;
Ela se aproxima mais da Terra do que era seu hábito,
E enlouquece aos homens.

Esta era uma crença comum naquele tempo e antecipou os modernos estudos psiquiátricos sobre o papel desempenhado pela Lua na agressividade humana e nos distúrbios mentais. Os seus personagens têm tal convicção nas influências astrais, que todas as suas falhas e desastres estão relacionadas a elas:

Insuportável peso desta hora!
Devia haver, parece, um grande eclipse
De Sol e da Lua, e que o globo atônito 
Devia abrir a boca ante o havido.

(“Otelo”, V, ii, 109-11)

Jean Paris, autor de um brilhante estudo sobre a obra de Shakespeare, observa que em todas as suas peças ele especulou sobre o destino individual relacio­nando-o com as fases da lua ou a posição das estrelas. Há também comentários freqüentes de seus personagens ao destino das dinastias e as fases da história em sincronicidade com as fases da lua:

“Os recentes eclipses do sol e da lua não nos prenunciam bem: embora a filosofia natural possa explicá-lo de um modo ou outro, mesmo asim a natureza se sente castigada pelo acontece. O amor esfria, a amizade decai, irmãos separam-se: nas cidades, motins; nos países, discórdias; nos palá­cios, traições; e se quebra a ligação que há entre filhos e pais.”

(Rei Lear, I, ii,112-9) 

A Renascença foi um período privilegiado para o ocultismo e a astrologia. Com o desmoronamento da fé medie­val e o surgimento de uma postura filosófica baseada na investigação empírica e na liberdade de pensamento, o espírito voltava-se para uma sabedoria atemporal, no campo do misticismo. É a época em que a maior parte dos escritos reflete uma busca pelo absoluto, com a redescoberta dos mistérios da Antigüidade greco-romana; a filosofia gnós­tica, a alquimia, o rosacrucianismo, a Cabala fascinam os escritores e um grande número de filósofos e intelectuais. Isto por si só explicaria a persistência do sobrenatural nas peças de Shakespeare, bem co­mo as constantes referências astrológicas. Mas, afora essas circunstâncias temporais, o Bardo era um argu­to psicólogo e como tal fazia uso das ferramentas de que dispunha em seu tempo. E a astrologia não é a mais antiga forma de conhecimento psicológico, que o homem conhece? Assim, ele descreve o perfil de uma alma criminosa:

“Pois nós, que batemos carteiras, nos guiamos pela lua e as sete estrelas, e não por Febo, aquele ‘lindo cavaleiro errante’... Pela Virgem, então, meu doce moleque, quando fores rei, não deixes que nós, escudeiros do corpo da noite, sejamos chamados de ladrões da beleza do dia: deixa que sejamos os guardas-florestais de Diana, cavalheiros da sombra, favoritos da lua; e que os homens digam que somos homens de bom governo, sendo nós governados como o mar por nossa casta ama, a lua, sob cujo auspício nós roubamos.”

(“Henrique IV, parte I, 1, ii, 15-43)

Em Romeu e Julieta (II, ii, 107-11):

Romeu: Eu juro, pela lua abençoada,
Que banha em prata as copas do pomar...
Julieta: Não jures pela lua, que é inconstante,
E muda todo mês em sua órbita,
Pro seu amor não ser, também, instável.

Mais uma vez a Lua é chamada a justificar os desvios de comportamento e a inconstância dos sentimentos humanos. E Marte, o astro da guerra, para explicar a mudança de curso da batalha:

O real curso de Marte, no céu,
Como na terra não é conhecido.
Inda ontem, brilhava pr’os ingleses;
Hoje ganhamos nós, com o seu sorriso. 

(“Henrique VI, parte I, 1, ii, 1-4)

O princípio alquímico expresso na frase “o que está em cima é igual ao que está em baixo”, encontra na correlação astrológica sua expressão ideal. 

Apesar das evidências, há quem veja em Shakes­peare um tom crítico em relação à astrologia. Tornou-se célebre a citação das palavras de Cássius, em “Júlio César”, quando se quer ironizar a crença no determinismo astral: 

“Os homens raramente são senhores dos seus destinos. O erro, caro Brutus, não está nas nossas estrelas. Mas em nós próprios, porque somos subordinados.” 

Na verdade, Shakespeare usou a astrologia de modo mais profundo, que vai além de simples e vagas referências “às estrelas”. O conhecimento astrológico do dramaturgo surpreendeu muitos pesquisadores que se debruçaram sobre a sua obra. John Addey observou que Shakespeare constantemente fez uso das referências astrológicas como uma maneira de demonstrar que o comportamento humano deveria refletir a ordem ideal e a harmonia do universo, crença profundamente enraizada na cultura de sua época.

Os nega­dores da astrologia alegam que o tom de crítica é sempre colocado na boca dos vilões, como nesta fala do bastardo Ed­mond, em Rei Lear:

“Essa é a maravilhosa tolice do mundo, que, quando as coisas não andam bem – muitas vezes por nossa própria conduta –, culpamos, por nossas desgraças, o Sol, a Lua e as estrelas: como se fôssemos patifes por necessidade; todos por compulsão celeste; velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio esférico; bêbedos, mentirosos e adúlteros pela obediência forçosa a influências planetárias; e tudo o que é ruim em nós é atribuído à influência divina: ótima escapatória para o homem, esse mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas por sua natureza grosseira. Meu pai se juntou à minha mãe sob a cauda do Dragão e meu nascimento se deu sob a Ursa Maior; daí eu ser violento e lascivo. Por Deus, eu teria sido o que sou, ainda que a mais virginal estrela do firmamento houvesse brilhado por ocasião da minha bastardização”

Quis o destino, a fatalidade ou os astros, que Sha­kespeare viesse a morrer como um de seus per­sonagens, Cássius, no dia do seu aniversário, 23 de abril de 1616. Talvez, antes de dar seu úl­timo suspiro, tenha se lembrado dos versos que pôs na boca de Cássius:

Neste dia eu nasci: fechou-se o círculo.
E onde comecei, hei de acabar;
A minha vida agora já correu.

(“Júlio César”, V, iii, 23-5)


Quem ler atentamente as peças de Shakespeare encontrará abundantes referências astrológicas. Abaixo, algumas delas:


“São as estrelas,
As estrelas no céu que nos governam.”

(Rei Lear, IV, iii, 35)


“Quando os mendigos morrem nenhum cometa aparece; eles brilham nos céus somente quando os príncipes morrem.”   

(Júlio César)


“Saturno e Vênus em conjunção neste ano! O que diz o almanaque sobre isso?” 

(Henry IV


O próprio céu, os astros e este mundo 
Observam grau, prioridade, escala,
E curso, e proporção, forma e rodízio, 
Comando e posto, em toda a linha de ordem.  
Em conseqüência, vede o sol-planeta 
Posto em nobre destaque em sua esfera, 
Em meio aos outros, cujo olhar propício 
Corrige os erros dos planetas maus 
E domina e comanda, como um rei, 
Sem pôr limite entre o bem e o mal.  
Mas quando os astros entram em desordem, 
Que pragas, que presságios, que motins, 
Que revoltas no mar, tremor na terra, 
Tempestade nos ventos, medo, horrores, 
Perturbam, quebram rasgam as raízes 
Da unidade e calma dos Estados.
Se acaso se destrói a hierarquia,
Que é a escada de todo alto desígnio,
Toda a empresa se abala. Como podem
Classes de escolas, ou comunidades,
Pacífico comércio entre cidades,
A primogenitura e o nascimento,
Prerrogativas, cetros e coroas,
Senão por graus manter-se onde merecem?
Remova-se esses graus, falhe essa nota,
E vejam que discórdia! As coisas entram
Em conflito gratuito: as águas, soltas,
Erguendo-se mais alto do que as praias,
Tornam em lama todo o globo sólido;
O mando entrega-se à imbecilidade,
E o rude filho fere e mata o pai.
Seria a força o certo: o certo e o errado,
De cujas forças a justiça nasce,
Perderiam o nome, co’a justiça.
Então, tudo se enquadra no poder,
O poder, na vontade e no apetite;
E o apetite - lobo universal -
Baseado no poder e na vontade,
Terá co’a força o mundo como presa,
E acabará comendo-se a si mesmo.
(Troilus e Créssida)

Bibliografia:

C. J. S. Thompson, Astrology in Shakespeare's Plays, http://www.djmcadam.com/astrology-shakespeare.html
Elizabethan Astrology, http://www.elizabethan-era.org.uk/elizabethan-astrology.htm
Frank Piechoski, http://starcats.com/anima/shakespeare.html
Jean Paris, “Shakespeare”, José Olímpio Ed., 1992
Philip Brown, Shakespeare and Astrology, www.chartplanet.com/html/shakespeare.html
Shakespeare, Obras 

Notas:

(1) John Dee (1527-1608), astrólogo, mago e ocultista. Precursor das experiências no campo da percepção extrasensorial, tornou-se conselheiro e confidente da rainha Elizabeth, que o ouvia não só em questões referentes a assuntos de Estado como também em problemas pessoais. Além de astrólogo da rainha, também foi espião do Almirantado (sob codinome 007!). Um dos homens mais cultos de seu tempo, praticou a astrologia com considerável competência, além de dedicar-se também à alquimia.

(2) A rainha Elizabeth, que governou a Inglaterra de 1558 a 1603, como tantos outros so­be­­ranos de sua época, tam­bém era uma apaixonada pe­lo ocul­tismo e pela metafísica. Sabe-se que patrocinou em vida o as­trólogo John Dee, célebre por alardear comunicação com anjos e espíritos. A própria rai­nha tinha crises de misticismo que só aumentaram com a velhice. Quando caiu doente, em 1603, quis saber o que lhe re­servavam as configurações astrais e foi recomendada a mudar-se para Richmond e evitar Whitehall. Visões fúne­bres a haviam alertado sobre o fim próximo: tinha visto o seu próprio corpo descarnado, envolto numa luz resplandecente. Em Richmond, as alucinações e pesadelos continuaram, o que a levou a sujeitar-se a uma sessão de necromancia e exor­cismo, onde se viu projetada para fora do seu corpo. Durante a sessão, teria sido encontrada uma carta da Dama de Copas, com um prego atra­vessado na testa, que a prendia embaixo da cadeira da  rainha.


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